artigo recomendado

Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections

29 de junho de 2009

Crítica Marxista n. 28

[On the telephone - 1928.
Alexander Rodchenko]


Foi lançado agora em junho o mais recente número da revista de teoria política e social Crítica Marxista, do Centro de Estudos Marxistas (CEMARX) da Unicamp.

Sumário

ARTIGOS

Nota sobre atual Crise econômica
J. Quartim de Moraes

Conselhismo e democracia
Luciano Martorano

Eco-socialismo e planificação democrática
Michael Löwy

A institucionalidade financeira
Nelson Prado Pinto

Frações burguesas e bloco no poder
Francisco Farias

Difusão e recepção dos Grundrisse
Marcelo Musto

Três poemas portugueses e um impasse
Hermenegildo Bastos

DEBATE
Há um novo salariado?
G. Duménil, J. Lojkine e M. Vakaloulis

COMENTÁRIOS
Uma polêmica na definição marxista do proletariado
Sávio Cavalcanti

“Cabra marcado pra morrer”: uma releitura
Rafael Vilas Bôas

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a classe senhorial brasileira


[Lord of the Head, 1988.
Mario Cravo Neto.
Pirelli/Masp]


“Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de ‘menino diabo’; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce ‘por pirraça’; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — ‘ai, nhonhô!’ — ao que eu retorquia: — ‘Cala a boca, besta!’ — Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos”.

Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, cap. XI.
In: _____.
Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 526-527.
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23 de junho de 2009

Uma instituição pública, sob as ordens do mercado



[Circular stairs of Bremen Trade School.
Germany, 1954. Dmitri Kessel. Life]

Ruy Braga*
O Estado de S. Paulo
23 jun. 2009

O ataque militar com bombas de gás, bombas de concussão e tiros de borracha ao prédio da FFLCH, na Cidade Universitária, é tão chocante quanto emblemático. É chocante, pois os professores, reunidos em assembléia no prédio dos cursos de História e Geografia, nunca representaram ameaça à ordem pública. Emblemático, pois violentou uma escola que se notabilizou internacionalmente por sua produção acadêmica crítica, reflexiva e, por isso mesmo, tradicionalmente insubmissa aos poderosos de plantão e seus projetos antidemocráticos de universidade.

Evidentemente, trata-se de uma violência interessada. O governador de São Paulo, José Serra, e a professora Suely Vilela, reitora da USP, sabem o que se encontra em disputa hoje: dois projetos antagônicos de universidade enfrentaram- se em 2007, quando então o governador buscou eliminar a autonomia universitária por meio de seus mal-afamados decretos. Naquela ocasião, a ação de forças de oposição fizeram-no recuar, impondo-lhe uma incontestável derrota. A reação não tardou e o armistício simbolizado pelo decreto declaratório de maio daquele ano parece estar sendo revogado aos poucos.

A Universidade Virtual do Estado de São Paulo, a nova carreira docente, a política de moderação salarial permanente, a demissão de um dirigente sindical em pleno mandato e o recurso à Polícia Militar para reprimir um protesto pacífico de estudantes desarmados mostram, inequivocamente, que o ataque à autonomia universitária voltou. O objetivo de Serra e Suely Vilela é aprofundar a fratura que já existe na universidade, entre cursos desprestigiados e destinados a formar força de trabalho semiqualificada em larga escala e cursos prestigiados e organicamente, vinculados a empresas interessadas em obter conhecimento tecnocientífico subsidiado pelo Estado.

Uma das principais ameaças à autonomia universitária consiste na progressiva submissão dos pesquisadores ao despotismo de mercado. A heteronomia acadêmica se impõe como regra, limitando a natureza criativa e inovadora do campo científico. Assim, a prática do pesquisador se vê degradada e sua liberdade, cerceada. Um novo regime disciplinar de produção e difusão do conhecimento científico vai se consolidando na universidade que responde, sozinha, por cerca de 28% da pesquisa científica brasileira. Um regime cujo sentido consiste em fazer com que a pesquisa científica se submeta às estratégias do modelo de acumulação vigente no país.

Contra esse projeto, setores universitários insubordinaram- se novamente este ano, sendo duramente reprimidos pela PM. Não causa espanto: tal projeto é incompatível com qualquer forma, ainda que incipiente, de democracia. Não é sem razão que no colégio eleitoral que escolheu o nome de Suely Vilela como primeiro da lista tríplice a ser levada ao governador, os votos dos representantes de entidades empresariais de agricultores, pecuaristas, comerciantes e industriais eram equivalentes em número aos votos de todos os representantes dos servidores não-docentes da USP.

A falta de participação da comunidade atenta contra o Artigo 14 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que trata dos princípios da Gestão Democrática. O colégio do segundo turno contou com apenas 300 votantes entre 97.000 professores, estudantes e funcionários. Ou seja, 0,3% daqueles que participam da universidade indicaram o dirigente máximo da instituição. Mas mesmo isso já não é suficiente. Serra e Suely Vilela mostraram-se dispostos a aprofundar essa situação: cinco das últimas nove reuniões do Conselho Universitário foram realizadas no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Por se tratar de uma instituição estratégica para o programa nuclear brasileiro, toda a área é fortemente militarizada.

Pela mesma razão, a nova carreira docente da USP, que submete promoções por mérito ao arbítrio da reitoria, foi aprovada de forma sumária em uma votação reconhecida pela própria assessoria jurídica da universidade como ilegal. Em síntese, temos acordos salariais não cumpridos, demissão de sindicalistas, recusas em negociar com entidades representativas, reuniões em áreas militarizadas, votações ilegais... Para realizar seu projeto, a reitora, apoiada pelo governo do Estado, necessita atentar contra a LDB, os acordos, as normas e as regras da própria universidade.

Suely Vilela não agiu irrefletidamente ao chamar a PM para ocupar o campus. E Serra sabia o que estava fazendo ao autorizar o ataque à USP. A repressão aos piquetes não passa de mero pretexto. Na verdade, esse projeto não tolera nenhuma forma de dissenso, de conhecimento crítico, reflexivo, por isso fomos encerrados em um verdadeiro “estado de exceção” não-declarado, sob o ataque de bombas de gás, bombas de concussão e tiros de borracha.

* Professor do Departamento de Sociologia da USP e autor, entre outros livros, de Infoproletários (com Ricardo Antunes, Boitempo, 2009)

21 de junho de 2009

Universidade e democracia

[World'S Fair. Undulating exterior detail of an unident.
exhibition bldg. at the New York World's Fair.
1939. Alfred Eisenstaedt. Life]


Folha de S. Paulo
São Paulo, domingo, 21 de junho de 2009

Que universidade é essa?

RENATO JANINE RIBEIRO

A USP é a melhor universidade da América do Sul. E é a única universidade pública brasileira que não tem eleições diretas para reitor. Esses dois traços estão ligados ou não? Parte da comunidade acredita que ela é a melhor porque não cai na demagogia. Outra parte acha que não ter eleições diretas é sério déficit democrático.
Muito da discussão se deve a uma confusão entre poder e autoridade. Na academia, o que conta é autoridade. Ter autoridade não é mandar. "Auctoritas" é algo difuso. Vem do latim "augere" -crescer, desenvolver, animar, embelezar-, que, por sinal, também dá "augusto". Expressa um sentido moral, um respeito à qualidade. Passa pelo reconhecimento do mérito no pensar, no criar. Na democracia, o poder vem da eleição. Mas nem voto nem nomeação dão autoridade.
Dentro da academia, um poder sem autoridade é vazio. Uma universidade ou um departamento chefiados por quem não tem autoridade acadêmica perde em respeito.

Povo USP
Assim, primeiro ponto: uma universidade deve ter qualidade. Esse é o seu diferencial específico. Deve formar bons alunos, mas, se tiver ambição de liderança, deve formar doutores muito bons e fazer pesquisa entre boa e ótima. Isso a USP faz. Segundo: "democracia", o poder do povo, exige uma pergunta. O que é o povo? Há um "povo USP", composto de seus docentes, funcionários e alunos, que teria o direito ético de eleger a direção da universidade? Não. O povo que existe é o paulista, que sustenta a USP. Os servidores, docentes ou não, que ele paga, e os alunos, que recebem de graça um ensino muito bom, não são um povo.
Ninguém de nós cogitaria que a direção das secretarias de Estado fosse eleita por seus funcionários, ou a dos hospitais pelos seus servidores. Mas, se o reitor da USP fosse nomeado (e demitido) pelo governador como um secretário de Estado, seria um desastre.
A autonomia é necessária -justamente, porque a universidade se distingue por sua qualidade. Sou contra a "meritocracia". Numa democracia, o poder ("kratos") é do povo. Ter poder implica definir metas para o governo. A universidade é um meio excelente para certos fins que nossa sociedade consensuou democraticamente: formação de profissionais (na graduação) e, nas melhores instituições, formação de pesquisadores e avanço na pesquisa.
Sendo um meio, a universidade tem de ser muito boa. Daí que nela deva contar não o poder, mas a autoridade. O governador recebe poder do povo. Já a autonomia da universidade decorre de sua autoridade. Isso a deve afastar dos confrontos partidários -cujo lugar correto está na disputa pelo poder político. A pesquisa pós-graduada constitui o segredo interno da boa universidade. Ninguém sabe disso fora dela. Quando a imprensa ou os políticos se debruçam sobre as universidades, quando discutem vestibular ou cotas, pensam na graduação.
Mas o que distingue uma universidade em segundo grau -isto é, aquela que forma quadros para serem criadas e desenvolvidas outras instituições de ensino superior, fazendo o que chamamos de "nucleação" (isto é, formar núcleos de bons docentes)- é sua pujança na pós-graduação. E isso porque, no Brasil, à diferença dos EUA, quase toda a pesquisa, inclusive parte da tecnológica, se faz nas universidades. Mas quem é o sujeito da autonomia, quem -dentro da universidade- detém legitimidade para, em nome dela ("autos"), dar-lhe suas regras, suas leis (o "nomos")? Aqui está o problema.
Neste ano, teremos a sexta eleição para reitor por regras que fazem com que, depois de um primeiro turno em que votam mais de 1.200 membros das congregações e conselhos, o nome se defina num segundo turno restrito aos 256 membros dos conselhos centrais. Das cinco eleições realizadas desde 1989, só numa venceu um candidato de oposição ao reitor. Milhares de docentes doutores nem sequer votam no primeiro turno, e o segundo turno é próximo demais do poder. Isso não é bom. Afasta o reitor da comunidade.
Tal situação favorece a greve de (quase) todo outono e a reivindicação, que não tem apoio da maioria acadêmica, por eleições diretas. Por que digo que não tem apoio? Porque em nenhuma escolha depois de 1985 houve um candidato sequer que fosse à consulta direta. Todos aceitaram as regras do jogo. Mas ficou uma distância entre o reitor e sua comunidade, que o enfraquece.

Outro sistema
Na comunidade acadêmica, muitos não aceitam eleições diretas. Vários bons pesquisadores prefeririam um sistema que funciona bem, fora da América Latina: o do comitê de busca que entrevista os selecionados e, em razão de seu currículo e de seus projetos, escolhe o reitor. Mas não creio que esse sistema funcione aqui, porque contraria as tradições construídas nas últimas décadas e que tendem à eleição. Nosso sistema foi testado, está superado e defendo sua mudança para o futuro. Mudá-lo a quatro meses das eleições seria ilegítimo. Mas ele precisa ser ampliado.
Concluindo: primeiro, toda e qualquer mudança na direção da universidade só terá valor se aumentar, e não diminuir, a qualidade da pesquisa científica que fazemos. É por isso que muitos se opõem à eleição direta, na qual veem a subordinação da qualidade a questões políticas, a redução da autoridade ao poder. Segundo, precisa aumentar sensivelmente o colégio que escolhe o reitor. Pessoalmente, defendo que um colégio mais amplo -que inclua os membros dos conselhos departamentais e das comissões estatutárias nas faculdades- vote no primeiro turno; que o segundo turno também se amplie, talvez com o mesmo colégio; e que se negocie com o governador a substituição da lista tríplice por uma representação da sociedade no colégio eleitoral, de modo que a eleição do reitor se complete pelo voto.
Há, sem dúvida, outras propostas de ampliação. Mas qualquer mudança na eleição só tem sentido se for para aumentar a legitimidade do reitor -fazê-lo mais representativo, sim, mas lhe dar maior "auctoritas". Na USP, a autoridade foi para os líderes de bons grupos de pesquisa. A reitoria precisa recuperar a liderança, mas esta não é questão de poder, e, sim, de qualidade.

RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular de ética e filosofia política na USP e foi diretor de avaliação da Capes entre 2004 e 2008. É autor de "O Afeto Autoritário" (ed. Ateliê).



14 de junho de 2009

para pensar a cidade


[Eliane nº 1, Favela da Rocinha, 1999.
André Cypriano. col. Pirelli/Masp]

Fábia Berlatto*

É quase desnecessário dizer: há várias formas de pensar a cidade porque há muitas formas de viver a cidade, de representar e interpretar seus espaços e seus habitantes, bem como de conviver com eles.

Todavia, um sentimento socialmente compartilhado em relação à vida urbana vem gradualmente predominando: o medo. Esse sentimento provoca um outro, mais difuso e menos sutil: a insegurança.

A insegurança que atualmente aflige os habitantes da cidade é direcionada para o que se denomina hoje de “violência urbana”: ocorrências que envolvem principalmente o roubo, o furto, o assalto a mão armada, o latrocínio, mas também o homicídio doloso e as lesões corporais dolosas. É a divulgação em massa da “violência urbana”, pelo Estado e pela imprensa, que impulsiona esse movimento. Tais sentimentos – medo e insegurança – influenciam a percepção e o comportamento dos indivíduos em relação ao espaço em que vivem, em relação aos seus concidadãos e ditam as políticas e as prioridades de governo. São justamente esses sentimentos que dão ao crime uma relevância política e cultural estrondosa.

A cidade tornou-se um ambiente onde há uma fusão entre a sensação de insegurança social e insegurança policial. O medo de perder o emprego, por exemplo, emprego este que possibilita não só o planejamento do futuro, mas a construção da identidade do trabalhador como trabalhador (uma das vias de integração social, aliás) e o medo da violência urbana potencializam a desintegração social. Quando vivemos com medo, deixamos de utilizar a razão como parâmetro para medir e regrar nossas condutas. Diante deste panorama, há uma grande demanda social por segurança. Mas a pergunta é: o que está produzindo tanta insegurança é, de fato, o crime?

A análise das tentativas tradicionais de eliminar o crime, entendido pelo senso comum como grande gerador de insegurança social, constitui importante recurso para a compreensão das práticas que vêm historicamente sendo desenvolvidas no Brasil e que têm relação com o controle das “classes perigosas”.

A idéia das classes perigosas funciona entre nós mais como um mecanismo de estigmatização de uma determinada categoria social. O combate legal da pobreza, expresso na preferência pública por políticas repressivas e não integradoras, dá origem ao que os sociólogos chamariam de uma “sociodinâmica da estigmatização”. Como resultado, temos o reforço do mito de que a pobreza produz o crime, e a idéia, correlata, que os pobres são potencialmente e virtualmente criminosos.

Essa percepção compartilhada discrimina bairros brancos e não brancos, zonas seguras e zonas perigosas, áreas pobres e áreas ricas. Esse tipo de classificação espacial procura não só descrever um mundo, mas construir e impor um mundo (social) através da visão regulada pelo princípio da separação entre o Nós e o Eles. É como se Eles – os outros, os pobres, os criminosos – pertencessem a uma segunda categoria. Por definição, acreditamos que alguém estigmatizado, e em especial com esse estigma, não seja completamente humano. Daí muitas das críticas, por exemplo, aos “direitos humanos”.

Há um espaço social na cidade onde se concentram todas as formas de discriminação negativa: a favela. A favela ocupa, na representação social nacional uma posição de espaço perigoso, sujo, confuso etc.

O adjetivo perigoso foi gravemente ampliado nas últimas décadas, reforçado pelo discurso estatal e repercutido pela imprensa. Se antes a interpretação tradicional dos espaços pauperizados da cidade estava baseada nas idéias de desordem (urbana), desorganização (social) e atraso (cultural), agora essas comunidades estão mais fortemente associadas ao crime violento. É essa vinculação que legitima a progressiva associação de ações estatais de duas ordens: policial e social (mais a primeira que a segunda, diga-se).

Assim, seja como espaço sanitário ou como lugar perigoso, as favelas são vistas como locais a serem administrados e controlados pelo poder público. As duas são formas de intervenção governamental que discriminam esse espaço físico como o espaço preferencial dos “problemas sociais”. Isso tudo tem uma conseqüência bem palpável: as marcas espaciais contidas na cidade conferem aos indivíduos, além da imobilidade territorial, a imobilidade entre as categorias sociais. Pertencer a tal ou qual território significa experimentar as desigualdades de condições de vida e de oportunidades e implica em padrões específicos de interação e de sociabilidade.

É nesses termos que se constitui uma forma cruel de violência coletiva. É nesses termos, podemos dizer, que se impõe socialmente e culturalmente uma espécie de retorno da raça, mas de um racismo que agrega ao seu sentido mais elementar uma nova virulência: o fato de ela se apresentar com outro nome e com a máscara do medo do crime.

*Fábia Berlatto é graduada em Ciências Sociais, mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do Grupo de Pesquisa do CNPq Territórios da Pobreza: segregação social, vida cotidiana e direitos humanos.
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elites universitárias e o campo da Ciência Política brasileira hoje: um modelo teórico-metodológico


[Space Frontiers.
J. R. Eyerman. Life]

Adriano Codato e Fernando Leite (Universidade Federal do Paraná)

XIV Congresso Brasileiro de Sociologia
28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ)
Grupo de Trabalho: Teoria Sociológica

RESUMO


Propomos e discutimos a eficácia heurística de um modelo de análise para mapear o campo da ciência política brasileira contemporânea. Pretende-se verificar se há instâncias (agentes, instituições e “escolas” teórico-metodológicas) hegemônicas no campo e, em caso afirmativo, nomeá-las. Essas instâncias estão distribuídas e hierarquizadas conforme a posse de certas espécies de capital (capital propriamente acadêmico, capital político, capital institucional etc.). Lançamos mão de várias fontes para revelar as posições de agentes, “escolas” e instituições de modo a verificar se há ou não instâncias dominantes no campo. Esse modelo implica na análise: i) da produção acadêmica da ciência política brasileira; ii) da evolução dos currículos dos principais programas de pós-graduação da disciplina; e iii) da história dos principais agentes (a “elite”) e instituições do campo.


clique aqui para ler o paper completo

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4 de junho de 2009

a reeleição e as falácias dos políticos


[Italian fascist dictator Benito
Mussolini looking through binoculars
on deck of war ship. 1940. Life]

Adriano Codato e
Luiz Domingos Costa

O apoio “popular” à possibilidade do Presidente Lula disputar já no ano que vem mais um mandato e a expectativa, entre alguns políticos da base, de que ele vença facilmente a eleição dá o que pensar.

Há pelo menos dois problemas que se impõem por si mesmos e que podem ser abordados a partir desse episódio: os valores do campo político e as interseções entre o campo político e o campo jornalístico. Porque o assunto é comprido, vamos falar aqui só do primeiro.

Existem três falácias embutidas no argumento a favor do continuísmo. A primeira falácia diz respeito ao “clamor popular”.

O conceito de democracia supõe, evidentemente, que se atenda à vontade dos eleitores. Mas não é apenas isso caracteriza o regime liberal-democrático. Outros elementos são fundamentais na definição e na prática da democracia ocidental. Dentre esses, a alternância no poder e a estabilidade das regras do jogo.

É necessário que um candidato derrotado nas urnas entregue o governo aos seus opositores quando estes forem vencedores. Paralelamente, a oposição tem de acreditar que um governante, na iminência de perder seu mandato nas urnas, não vire a mesa e desfaça o acordo legal e tácito de que o próximo vencedor assume o poder. Este tipo de confiança, fundamental para garantir a alternância no poder, só existe com base na fé de todos na legalidade e na legitimidade das regras do jogo e na continuidade das mesmas.

Por isso, um líder ou um partido que altera as regras do jogo em benefício próprio sabota dois princípios fundamentais da democracia representativa. Isso abala tanto a confiança que a classe política deposita no tipo de jogo (a democracia como o melhor método de seleção de lideranças), como a confiança popular na natureza do jogo (a democracia como um valor político generoso).

Os políticos e os partidos intuem que a chance de ganhar eleições e assumir o poder é uma das principais garantias não só de que continuem disputando, mas que haja disputa (isto é, democracia). Paradoxalmente, a democracia, como bem público, é o resultado indireto do interesse privado dos políticos no sucesso da própria carreira.

A manutenção das regras e a mudança de líderes são fundamentais para assegurar não só a reprodução política dos políticos profissionais, mas a legitimidade do sistema. Bem ou mal, essa é a causa da estabilidade democrática. Ela não é só uma tara jurídica ou uma miragem liberal, mas uma garantia contra eventuais tiranias, populares ou não.

A segunda falácia diz respeito à submissão do tema da reeleição a um plebiscito popular agora. Há aqui um problema menos de forma (o plebiscito como método de consulta) do que de oportunidade.

Plebiscitos, consultas periódicas, mandatos mais curtos, mecanismos mais eficientes de controle sobre os representantes, eleições para postos político-administrativos e judiciários, formas de deliberação alternativas à parlamentar não são práticas estranhas a democracias consolidadas. Nem foram inventadas pelo socialismo bolivariano, como imaginam, escandalizados, os conservadores. Há muitos mecanismos e mecanismos muito diferentes de participação cívica. Nos EUA, em alguns estados elege-se desde magistrados das cortes estaduais até o administrador regional da prefeitura. Na França, o cargo de vereador recebe uma remuneração simbólica (pouco mais de 200 euros), as reuniões são à noite, uma vez por semana e após o trabalho. Os conselheiros municipais se especializam em um assunto apenas e têm de prestar contas das suas decisões, além de ouvir as associações civis envolvidas em cada questão. Por exemplo.

No Brasil, junto com a consolidação democrática consolidou-se a idéia errada na “opinião pública” e naqueles que fazem a opinião pública que democracia é igual a eleições periódicas. E só. E que os mandatos executivos e legislativos são propriedade dos políticos de carreira. O fato de eles usarem essas posições de poder para, na maioria do tempo, investir na própria carreira e o fato dos eleitores se esquecerem em quem votaram em menos de seis meses depois da “festa da democracia” dá bem a medida do caráter limitado do regime democrático entre nós.

Um plebiscito agora e para isso – a emenda da reeleição – é oportunismo. Por que plebiscitos e outras formas de mobilização da opinião pública não são utilizados com mais freqüência? Parece óbvio que os parlamentares que insistem nesse assunto estão preocupados exclusivamente com a manutenção dos privilégios que dispõem: cargos na burocracia do executivo e posições de comando no legislativo. Além das vantagens materiais consideráveis derivadas dessas primeiras.

A terceira falácia diz respeito ainda ao plebiscito popular. Há na proposta também um problema de conteúdo: o “popular” como metro da opinião pública.

Se decidirmos estender os mandatos de cada presidente com alta popularidade no Brasil (de dois para três, de três para quatro etc.), correremos dois riscos. Manter um único presidente por períodos muito longos, experiência que dificilmente dá certo. O segundo risco é transferir o poder de deliberação não para o eleitorado, mas para os institutos que medem e as empresas que divulgam a “popularidade”. Quem já fez pesquisa sabe como pesquisas podem ser feitas. Além de tudo, sempre pode surgir a mesma proposta, só que pelo verso: a destituição de governantes por falta de apoio “popular” ou por baixos índices de aprovação da “opinião pública”. Desnecessário lembrar como a opinião pública é produzida.

Portanto, a emenda da reeleição não tem nada a ver com “popularidade”. Essa manobra oportunista e casuísta só pode surgir de um mundo político que gira em falso, se preocupa demais em legislar sobre suas próprias vantagens e privilégios, e, como confessou um ilustre parlamentar, se lixa para a opinião pública. O distinto público só é chamado a opinar em plebiscitos quando se tem certeza de que o resultado será favorável a tal ou qual facção política.

Assim, o que está em jogo hoje não é responder ao apelo geral de uma fictícia opinião pública, mas aos interesses particulares do campo político. Raciocínio idêntico poderia ser aplicado à “emenda da reeleição” do doutor Fernando Henrique. Que os políticos que apoiaram esta estejam contra a emenda atual não é uma incoerência. É um sintoma da falta de responsabilidade de toda a classe política com os princípios e pressupostos da democracia liberal.
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